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quinta-feira, 3 de março de 2011

TEXTO 53 - SÃO TOMAS DE AQUINO E OS ÁRABES.

Johannes Lohmann*



O espaço mediterrâneo - que compreende substancialmente as três partes do mundo dos antigos: Europa, Ásia, Líbia - forma um todo cultural desde tempos imemoriais. Mas, nessa continuidade, várias vezes milenar, houve uma ruptura de mais de mil anos que se estende, aproximadamente, do século VII ao XVIII - de Muhammad a Napoleão. Durante este longo período, não só reinou uma guerra sangrenta, quase contínua, entre os dois blocos desse conjunto, chamados correntemente Oriente e Ocidente, mas também uma "cortina de ferro" avant la lettre, constituída por uma incompreensão total e recíproca. Mas, nesse diálogo de surdos que durou cerca de doze séculos, houve uma interrupção, justamente no meio desse período, ou seja, nos séculos XII e XIII, durante a época das Cruzadas - fenômeno sem paralelo na história, marcado por dois fatos correspondentes, a saber: o êxodo da elite do mundo ocidental em direção ao Oriente, por um lado, e, por outro, a invasão das idéias e das ciências orientais (além da filosofia, astronomia e astrologia, matemática, química e, especialmente, medicina) na Europa ocidental. Na realidade, esse período da Idade Média constitui o verdadeiro Renascimento da filosofia e das ciências na Europa latina, muito mais que o chamado "Renascimento" dos séculos XIV e XV em diante, que não fez mais que consumar o que então fora feito.

O acontecimento, central sob todos os aspectos, desta "revolução cultural", teve lugar na primeira metade do século XIII: a recepção do aristotelismo árabe - que não se deve confundir, de modo algum, com o próprio Aristóteles - pela filosofia escolástica da Idade Média. Este acontecimento, fundamental na história do pensamento ocidental, é, antes de mais nada, marcado por dois nomes: Alberto Magno e Tomás de Aquino. Mas para compreender verdadeiramente o que se passou então, devemos recorrer à origem e à raiz de duas formas opostas de pensamento, fundamentadas, cada uma delas, em um tipo específico de língua: o indo-europeu e o semítico, que se encontraram, então, para engendrar uma nova forma de pensamento, da qual procede, em linha reta, nosso mundo de hoje.

No centro desta transformação espiritual, acha-se a recepção, por parte da filosofia escolástica do século XIII, da concepção especificamente árabe de intencionalidade. Não se pode compreender o significado desta recepção, senão por uma comparação entre as diversas formas de pensamento, tal como elas surgiram, antes de mais nada, nos diferentes tipos de língua.

Entre a infinita diversidade de línguas e de tipos lingüísticos que existem ou existiram no mundo, encontram-se dois em que a construção das frases é caracterizada por uma centralização levada a extremo: o primeiro tipo constitui a nossa própria família lingüística - a indo-européia - e o outro compreende (sem afinidade genealógica aparente) uma imensa área geográfica que vai do Atlântico Norte até o Pacífico - do lapão e do húngaro até o japonês (não estamos, naturalmente, levando em conta a colonização russa dos últimos séculos). No centro e a oeste dessa área lingüística, encontram-se as línguas chamadas uralo-altaicas, dentre as quais destacamos as diversas línguas turcas, que se estendem desde o Bósforo até a esfera polar.

Em um desses dois tipos, o indo-europeu, os componentes da frase agrupam-se em ordem circular ao redor de um verbo (que, em latim, é chamado verbum finitum), com o qual cada um desses membros relaciona-se direta ou indiretamente. Já no tipo da Eurásia do Norte, a construção da frase é, pelo contrário, estritamente linear: no sentido de que o membro determinante é rigorosamente colocado diante do determinado. O sujeito da frase é, então, considerado como determinante do predicado, de tal modo que o fim da frase não é, em princípio, marcado, senão pelo término dessa cadeia linear de determinação, em que cada membro se relaciona, afinal, ao último.

No centro semântico desses dois tipos encontra-se, no primeiro caso - o do indo-europeu -, o verbo esti (ser), que, segundo Aristóteles, está implicitamente contido em qualquer outro verbo. No outro caso - o do uralo-altaico e de línguas aparentadas -, temos, em seu lugar, um par de verbos que designam, respectivamente, a existência ou a não-existência - por exemplo, em turco var: "existe... tal" e yok: "não existe...". Chamamos de "enunciação explícita" o tipo indo-europeu; e, de "simples constatação", o tipo uralo-altaico.

Entretanto, para a explicação de nosso tema, necessitamos ainda de um terceiro tipo: o que chamamos de "intencional". Este conceito de intencionalidade é tão característico da forma árabe de pensamento, como o é a noção específica do termo grego logos, em sua concepção original, para a forma de pensamento do grego clássico. E, além do mais, justamente por essas duas noções, ou, por assim dizer, sob os auspícios dessas duas noções, é que estas duas formas de pensamento, encarnadas, cada uma, em uma língua determinada - o grego clássico e o árabe clássico - exprimiram-se como tais em uma filosofia. Que a filosofia árabe seja, em seu aspecto externo (isto é, quanto a seu conteúdo material), procedente da recepção de uma filosofia estrangeira - o aristotelismo grego do final da Antigüidade-, isto não altera em nada, o fato de que esta filosofia árabe seja formalmente a mais perfeita expressão do gênio da língua árabe - enquanto a filosofia grega, não é, em substância, senão uma expressão, ou antes, uma explicitação da idéia fundamental do pensamento e da língua gregas, a saber: logos.

O árabe, como o semítico em geral, de um lado, e o grego, de outro, estabelecem relações com o mundo: um, principalmente pelo ouvido e o outro, pelo olho. Tal fato levou o falante semítico a uma preponderância da religião, enquanto o grego tornou-se o inventor da teoria. Daí decorre (ou procede...?) uma diferença análoga das respectivas línguas, quanto a seu tipo de expressão. Cada um desses dois tipos caracteriza-se por um procedimento gramatical específico: flexão de raízes no semítico, flexão de temas no indo-europeu antigo e flexão de palavras no europeu moderno.

Tanto na flexão de temas (por exemplo, em grego, anthropo- s, n, i, us etc.) quanto na flexão de palavras do europeu moderno, o falante atribui - nas formações gramaticais de sua língua - noções determinadas (expressas por temas ou palavras) a objetos determinados. Na flexão de raízes semíticas, o falante serve-se de uma certa articulação fônica (chamada em árabe lafz), isto é, de uma combinação sistemática de grupos de consoantes (chamadas raízes; por exemplo, k-t-b, que significa escrever) com uma vocalização determinada (por exemplo kátib "escriba", kitáb "livro") para exprimir o sentido desejado (chamado em árabe ma'na; o que se traduziu em latim medieval por intentio).

Temos, então, três tipos de língua, ou antes, de expressão lingüística:

1) o tipo de predicação explícita com o verbo esti (ser) como centro lógico da frase;

2) o tipo de simples constatação com os dois verbos de existência, "há tal..." e "não há tal..." (em turco var e yok) e

3) a forma "intencional", que ocorre no semítico e, particularmente, no árabe.

Dentro do primeiro tipo, há duas variantes (1a e 1b) representadas, respectivamente, pelo grego antigo e pelo europeu moderno - notadamente pelo inglês atual. Esta última variante é caracterizada por um distanciamento entre a palavra e seu objeto (correspondente à atitude do subjetivismo moderno, em que se distanciam "subjetividade" e "objetividade"). Já a forma logos de pensamento grego apresenta uma identificação ou isomorfia na articulação do discurso e seu objeto. Esta concepção - a consciência de uma isomorfia na formulação de uma relação com a coisa conhecida - foi a base da invenção do método matemático pelos gregos - método cujo princípio fundamental é justamente uma identidade absoluta entre a fórmula e a coisa formulada.

Na Europa moderna, pelo contrário, o sujeito falante sente-se exercendo a função de juiz, pronunciando um veredicto sobre cada caso - o que levou Kant a deduzir suas "categorias" das formas de juízo.

Só a partir desse enquadramento é que se pode explicar como a forma exterior das línguas em questão, corresponde, até o último detalhe, a esse estado de consciência dos sujeitos que falam - que designaremos, daqui por diante, por intentio, isomorfia e juízo (/julgamento).

Podemos também aqui deixar de lado detalhes - na medida em que o que nos interessa não são as línguas em si, mas as línguas enquanto pré-determinam uma certa concepção de mundo para o falante, ou como diz Heidegger, eine Erschlossenheit des Daseins.

O segundo tipo, o de simples constatação, não representa aqui, senão um ponto de referência, enquanto os outros três (1a, 1b e 3) - que caracterizamos por isomorfia, juízo e intencionalidade - designam três atitudes positivas do sujeito falante em direção ao objeto visado: as duas últimas colocam-se fora do objeto, enquanto a primeira (1a: isomorfia) identifica-se com ele.

Não se pense que estas sejam considerações abstratas, pois encontramos um semelhante esquema tripartite no pequeno tratado de S. Tomás, intitulado De ente et essentia, escrito, segundo o biógrafo Ptolomeu de Luca, "nondum existens magister: antes que Tomás tivesse obtido o grau de mestre". Ao final do quarto capítulo (na edição de L. Baur), S. Tomás faz três distinções: a coisa secundum suam absolutam considerationem, considerada em si; a coisa secundum esse quod habet extra animam, enquanto faz parte do mundo exterior; e, finalmente, a coisa secundum esse quod habet in intellectu, segundo o modo de existência de coisa pensada.

Este último modo de existência é notadamente o das entidades lógicas (espécie, gênero, diferença específica), que S. Tomás, em seu tratado, chama de intentiones, por excelência. Em Avicena, são as intenções secundárias, intentiones secundo intellectae, isto é, intenções dirigidas para as intenções primeiras - os objetos.

Parece-nos que o primeiro modo de existência de S. Tomás, absoluta consideratio, é idêntico à maneira de pensar do grego antigo, que é descrita pela palavra (e pela noção) logos e que, em matemática, significa a formulação de uma relação, que se identifica com uma relação objetiva - de onde vem a palavra e a noção de analogía: relação correspondente (anà) a uma outra relação (a:b = c:d).

O segundo modo de existência, segundo o texto de S. Tomás, isto é, o modo secundum esse quod res habet extra animam ou extra intellectum, corresponde à concepção de julgamento/juízo que domina o estado de espírito do europeu de hoje e de onde Kant deduziu suas "categorias".

Esta fórmula tripartite de S. Tomás - e, em particular, a possibilidade de interpretação que propomos -, não é senão uma conseqüência do fato de que, com esse pequeno tratado de S. Tomás, encontramo-nos, literalmente, nessa encruzilhada de idéias da Idade Média - da qual falamos acima -, encruzilhada em que duas formas de pensamento absolutamente distintas - uma procedente do logos grego e a outra, da intentio (em árabe ma'na) - reúnem-se para engendrar uma terceira forma de pensar, que é a nossa.

Isto vale até para o título do tratado - De ente et essentia - e particularmente para a justaposição destas duas palavras: ens e essentia, que ninguém, até hoje, compreendeu em seu verdadeiro significado. Com efeito, para se entender o sentido dessa justaposição, deve-se recorrer, não somente a palavras árabes - intraduzíveis em sua essência -, mas também à história do pensamento árabe desde antes da recepção do aristotelismo pelo mundo árabe e islâmico.

A fonte imediata de onde S. Tomás (como, aliás, ele mesmo diz várias vezes) encontrou inspiração para seu tratado e, particularmente, para o título do tratado, é o Grande Comentário de Averróes (Ibn Rushd) à Metafísica de Aristóteles - em especial, o comentário do capítulo 7 do livro Delta, o qual tem como tema o ón, o ente.

O livro Delta trata, em geral, dos pollakhos legómena, isto é, dos termos filosóficos (como princípio, causa, elemento, natureza, substância etc.) empregados em diversos sentidos, ou mais precisamente, de maneiras múltiplas (pollakhos). O ente - a noção de ser, tratada no capítulo 7 - é empregado, segundo Aristóteles, de quatro maneiras: 1) segundo as "categorias"; 2) como verdadeiro e falso; 3) como potência (dynamis) e ato (enérgeia) e 4) como "acidente" (kata symbebekós) ou "em si" (kath'autó).

Mas Averróes, em seu comentário - inspirado pelos exemplos que Aristóteles apresenta naquela passagem sobre o verdadeiro e o falso e, acima de tudo, manifestamente, por sua própria forma de pensar -, atribui ao Filósofo uma outra distinção - para ele dominante e que ele sobrepõe às distinções de Aristóteles - e que corresponde a dois dos três modi essendi de S. Tomás, dos quais acabamos de falar: esse in intellectu e esse extra animam.

Citemos a tradução latina do Comentário de Averróes (a de que S. Tomás dispunha): et intendebat distinguere inter hoc nomen ens quod significat copulationem in intellectu, et quod significat essentiam quae est extra animam: "e ele (Aristóteles) queria distinguir entre a expressão de uma relação somente no intelecto, e a de uma essência exterior à alma".

O raciocínio de S. Tomás, em seu De ente et essentia, é condicionado e determinado, inteiramente e em todos os seus detalhes, por essa divisão e distinção entre uma enunciação dada como tal e a essência da própria coisa. É uma distinção sobre a qual não encontramos o menor traço em Aristóteles: é expressamente atribuída por S. Tomás a Averróes, "o Comentador", o qual, com efeito, atribuiu essa distinção à Aristóteles: "philosophus dicit in quinto Metaphysicae...", ou seja o livro Delta.

Em árabe - e, portanto, para Averróes -, o título do capítulo 7 do livro Delta era huwiya: um termo técnico para uma função geral de atribuição. O árabe não possui um verbo como "ser" que, como dissemos, é próprio do indo-europeu. Por detrás da afirmação do Comentador: "nomen ens significat copulationem in intellectu" etc., há que distinguir, em árabe, dois casos, quanto à expressão da função de atribuição - dois modi significandi como o diz, desde S. Tomás, a Escolástica: um, significando somente uma relação na inteligência e o outro, significando uma essência.

Para se compreender o verdadeiro sentido e a importância real dessa distinção, deve-se, ainda, conhecer dois aspectos. A palavra árabe, traduzida em latim por significare (dalla/yadullu), possui, na realidade, um sentido muito mais concreto. Ela significa literalmente: "conduzir a um lugar" (dalil é o condutor). Essa noção de "significação", peculiar ao árabe, corresponde, exatamente, à forma de pensar "intencional" do árabe: uma articulação fônica (lafz) conduz a um determinado sentido, desejado ou entendido pelo falante (ma'na) - assim como um guia conduz uma caravana a um poço, ou como um piloto conduz o avião ou o navio ao porto.

O segundo aspecto que se deve conhecer para se compreender a intenção do Comentador, subjacente ao texto latino citado, é a noção de essentia (como tradução da palavra árabe dat). Dat - conceito profundamente arraigado no aristotelismo árabe na especulação teológica islâmica do século IX da nossa era, em Bagdad - é a essência de Deus, em oposição aos atributos, por cuja mediação fala-se de Deus no Alcorão. A essência de Deus, segundo a doutrina mu'tazilita - teologia oficial de Bagdad na primeira metade do século IX - é absoluta-mente transcendente em oposição a esses atributos. Essa transcendência absoluta de Deus - expressa pela noção dat e traduzida em latim por essentia -, em oposição a todas as noções descritivas (sifat, em árabe), transformou-se em S. Tomás (e, de certa maneira, já no Comentador, considerado uma autoridade por S. Tomás) em uma transcendência da coisa real com relação ao intelecto humano - transcendência que conduziu, em seguida e enfim, ao "Ding an sich" de Kant.

Este emaranhado de mal-entendidos e de insinuações involuntárias que acabamos de descrever é muito mais do que um simples incidente de tradução - tradução, primeiramente, do grego para o árabe e, depois, tradução do árabe para o latim -, e também mais do que um mero sintoma da transição de uma maneira de pensar a outra: ele representa a própria transição - transição que se perfaz no encontro de três atitudes filosóficas históricas que se encarnaram, respectivamente, em Aristóteles, Averróes e Santo Tomás.

A divisão quadripartite do ente em Aristóteles, e a distinção bipartite entre uma função intencional significando simplesmente uma relação intelectual (copulatio in intellectu) e a designação de uma essência fora da alma (essentia quae est extra animam) - distinção adotada por Santo Tomás no título (e no conteúdo) deste tratado, e ampliado em seguida numa distinção tripartite dos modos de ser (modi essendi) -, tudo isso compõe uma evolução de três milênios, que conduz do logos grego, através da forma de pensamento intencional do árabe, ao "subjetivismo" do eu pensante de Descartes, o qual, por sua vez, encontrou sua forma definitiva na filosofia de Kant.

Pode-se também considerar esta evolução que leva a Kant, do ponto de vista da noção de objeto. A criação desta noção tanto quanto sua história remetem, com efeito, muito precisamente ao fato da recepção da forma de pensamento árabe da intencionalidade e às conseqüências desta recepção, tanto quanto uma outra noção, a de determinação: esta noção, ou antes sua história, é função da história da noção de objeto, tanto quanto a história da noção de objeto é função da história do método de determinação.

A noção de objeto, tal como se formou desde a Idade Média, não tem quase nada a ver com o grego antikeímenon (do qual "objeto" aparenta ser a tradução, do mesmo modo que a palavra "sujeito", subiectum, é a tradução do grego hypokeímenon). É que ambos - subiectum e obiectum, "sujeito" e "objeto" - mais do que qualquer outra noção filosófica ou não-filosófica, sofreram a influência das modulações das idéias ao longo da história, de tal forma que as duas palavras gregas que lhes correspondem - hypokeímenon e antikeímenon - aparecem hoje em dia, em relação às nossas próprias noções de "sujeito" e "objeto", como sombras frágeis, perdidas nas profundezas da história.

A filosofia árabe não faz distinção entre subiectum e obiectum (no sentido medieval), assim como não faz distinção entre definição e determinação. Se então, no curso da recepção desta forma de pensamento árabe pelo latim medieval, traduziu-se maudu' (equivalente ao grego hypokeímenon), por subiectum e obiectum (este último, no sentido medieval de objeto "intencional") e se se traduziu hadd/tahaddud (equivalente do grego horos/horismós) por definitio e determinatio, há aí um inequívoco sintoma de uma dupla substituição fundamental das respectivas concepções, resultante da passagem da forma de pensamento grega à árabe e, em seguida, da árabe à latina, de modo que a forma de pensamento, resultado desta dupla recepção, adquiriu duas ou mesmo três facetas diferentes, tal como aparecem, com efeito, nos três modos de ver o ser, os modi essendi de Santo Tomás: a absoluta consideratio, e a consideração da coisa de acordo com o ser "fora da alma" (extra animam), por um lado, ou "no intelecto" (in intellectu), por outro.

Desses dois últimos modi essendi resultaram - se bem que ao termo de um desenvolvimento bastante complicado e, por assim dizer, tortuoso - as duas noções fundamentais do pensamento moderno: subjetividade e objetividade. O objeto, tal como o entendemos, é, como acabamos de dizer, resultado, primitivamente, da recepção da forma de pensamento intencional do árabe, mas este objeto "intencional", torna-se, a partir do século XVIII - em conseqüência do desenvolvimento da "subjetividade" do cogito cartesiano - o correlato do "sujeito" no sentido moderno da palavra, de modo que hoje a "subjetividade" no sentido moderno significa quase a mesma coisa que a "objetividade" medieval, e reciprocamente.

Vista sob este ângulo, a "fenomenologia" de Husserl - e, especialmente, a célebre "redução fenomenológica", que consiste em uma redução ao objeto intencional - não parece ser, na verdade, nada além de uma tentativa de restabelecer o estado originário, sobre uma base nova. Já Franz Brentano, o mestre de Husserl, renovara o termo escolástico intentio, mas transpondo-o do nível do discurso (onde ele se encontrava, para a escolástica, como seu correspondente árabe ma'na) ao do "fenômeno" psíquico ou psicológico (de onde resulta o termo "fenomenologia").

A condição prévia para toda esta evolução da noção de objeto que acabamos de indicar é a cisão, em latim medieval, do árabe hadd/tahaddud em definitio e determinatio. O objeto, no sentido moderno, é o correlato de uma determinação, notadamente nas ciências que os ingleses denominam "science". No fundo, toda essa ciência natural moderna, com suas realizações maravilhosas que transformaram radicalmente nosso mundo, nada mais é do que a conseqüência do desenvolvimento de métodos de determinação, cada vez mais refinados, na teoria como na prática, na matemática como nas ciências naturais!

Mas a chave e a fonte primitiva de toda essa evolução gigantesca dos métodos de determinação encontram-se, novamente, em Santo Tomás e, particularmente, em seu pequeno pecado de juventude, o De ente et essentia. Carl Prantl, o célebre historiador da lógica medieval, assinalou com muita propriedade que, na Idade Média, por ocasião da recepção do aristotelismo árabe, as querelas sobre o problema dos "universais" são substituídas pela discussão do problema da individuação.

Essa transferência de interesse teve lugar em conexão com o destino da noção árabe hadd/tahaddud, que, como vimos, cindiu-se em definição e determinação, assim como a noção de maudu' cindiu-se em subiectum e obiectum. Nos dois casos, esta partição das duas noções árabes, que os tradutores latinos verteram, respectivamente, para obiectum e determinatio, constituiu uma adição árabe (condicionada pela forma de pensamento árabe de intencionalidade) aos dois termos horismós (definitio) e hypokeímenon (subiectum). A origem das duas noções atuais de "objeto" e de "determinação" - ou, antes, sua função no desenvolvimento da nossa forma de pensamento - provém, portanto, deste ato de "copulação" das duas formas de pensamento, a européia original (que vem do grego antigo) e a árabe-semítica - ato ao qual nos é dado assistir imediatamente na leitura do pequeno tratado de Santo Tomás, sob a condição de lhe restituir seu pano de fundo árabe.

Isto vale especialmente para o célebre princípio de individuação materia signata de Santo Tomás, do qual ninguém compreendeu, até aqui, a origem e o verdadeiro significado. Materia (de)signata - em outros textos encontra-se também demonstrata! - é, em árabe, maddatun musharun ilaiha. Ou seja, literalmente: extensão - ou dimensionalidade - (madda) mostrado, indicado com o dedo (zeigen auf - em árabe: ishara ila).

Ora, este é precisamente o princípio da ciência moderna! É necessário apresentar, fazer ver, vorzeigen aquilo que se tinha antes determinado por uma dedução mental (como foi o caso, em 23 de setembro de 1849, do planeta Netuno, cuja órbita fora calculada pelo francês Leverrier e o inglês Adams, e depois observada pelo astrônomo alemão Galle no lugar correspondente ao cálculo), ou ainda inversamente; é necessário inserir uma determinada observação num contexto correspondente ao estado atual dos nossos conhecimentos científicos, por sua vez derivados de observações anteriores.

Mas o que falta em geral a esta ciência moderna é a consciência de que cada descrição de um fato constitui uma interpretação deste fato que, por princípio, não pode jamais ser idêntica ao próprio fato. Avicena já dissera em sua Metafísica (que, com o Grande Comentário da Metafísica de Aristóteles de Averróes, era uma das duas autoridades para Santo Tomás no De ente et essentia): não se pode determinar um fato como tal, senão apontando-o com o dedo - ishara ila, em árabe. E aí temos, precisamente, a origem do princípio de individuação - materia signata - em Santo Tomás - maddatun musharun ilaiha, em árabe.

Com este princípio da determinação de um objeto por uma extensionalidade dimensional, encontramos não apenas a raiz e a origem da oposição cartesiana entre a res extensa e o pensamento (que, de resto, é também a base da criação da geometria analítica por Descartes), mas este mesmo princípio nos conduz até a física atômica de nossos dias, que determina seu objeto desenvolvendo como base de seus enunciados uma extensionalidade multidimensional, ao mesmo tempo uniforme e infinita.

A este respeito, Santo Tomás parece-nos ainda ser o criador de uma outra noção, que caracteriza, mais do que qualquer outra, este modo de proceder da ciência moderna em seu aspecto positivo: é a noção de "precisão". Na Antigüidade - em Quintiliano, por exemplo - havia um termo de retórica, traduzindo o termo grego aposiopesis, que designava uma "breviloqüência" calculada do orador. Em Santo Tomás, o termo "praecisio" é sinônimo da noção de "abstração" (em grego, afairesis) e, ao mesmo tempo, opõe-se àquela noção criada por Aristóteles para caracterizar o método matemático. A precisão, ao contrário, é uma abstração desejada e calculada. Ela é, assim, uma "redução" no sentido inverso da redução fenomenológica de Husserl, que pretende justamente restituir a integridade do fenômeno originário, desaparecido deste mundo em que vivemos, mundo que é resultado de todo um sistema de precisões calculadas e, também de preconceitos inculcados. Esta "precisão" - no sentido de uma abstração de condições que impeçam ou embaracem um efeito desejado - desempenha, como se sabe, um papel predominante, não somente nas ciências exatas, mas ainda na técnica moderna que, afinal de contas, e mais do que qualquer outra coisa, contribuiu, para bem e para mal, para o estado do mundo em que vivemos.

Há, ainda, um outro fenômeno que se relaciona com a grande revolução da história, da qual nosso mundo atual é resultado e que tratamos aqui em conexão com o papel de Santo Tomás e de seu pequeno tratado De ente et essentia para o surgimento deste estado: é uma transformação da ciência matemática, que é não só contemporânea à recepção do aristotelismo árabe, mas também análoga àquele outro acontecimento, tanto em suas conseqüências quanto no fato de que ela foi inspirada pelo árabes.

A nova matemática provém, afinal de contas, da Índia. Importada da Grécia à Índia desde Alexandre, a matemática, tal como a filosofia grega no mundo árabe, adquiriu uma característica absolutamente diferente da matemática grega original. Ela tornou-se calculadora, o que se manifesta, antes de tudo, através da criação do algarismo "zero" que, como qualquer um pode perceber ainda hoje ao aprender cálculo, é a condição indispensável para um cálculo digno deste nome, e que, entretanto, os gregos não possuíam.

A matemática grega, de Tales a Euclides e mesmo depois, era intuitiva e, em conseqüência, centrada em torno da geometria. A matemática indiana e árabe - e também a matemática na Europa desde a importação desta matemática indo-árabe - era e é, ao contrário, uma arte do cálculo, centrada em torno do instrumento do número que, em conseqüência, assumiu hoje em dia uma multiplicidade de formas variadas - números fracionários, números negativos, números racionais, números reais, números imaginários etc. - da qual os gregos, criadores da matemática, sequer suspeitavam.

A criação e o desenvolvimento do cálculo, em combinação com a criação e o desenvolvimento da "precisão", tiveram conseqüências enormes, pois foi o cálculo calculado (onde é necessário ver, parece-nos, o sentido último do termo "precisão") que conduziu a esta decadência e a este definhar da verdadeira compreensão que Heidegger chama "esquecimento do ser" (Seinsvergessenheit). Para remediar isto, é necessário que escutemos o ser, "horchen auf das Sein".

É, com efeito, esta noção de ser (esse), que Heidegger toma de empréstimo a Santo Tomás e que depois foi falsamente atribuída aos filósofos gregos, que é necessário retomar em suas múltiplas facetas originais, das quais uma é a definição de Deus de Santo Tomás: ipsum esse subsistens. Esse, no caso, é o árabe wujud, traduzido mais freqüentemente por esse, mas que significa, na realidade, algo como: "o fato de encontrar-se em alguma parte", sich vorfinden, no sentido de existir realmente; ipsum, é o árabe dat, ou, mais exatamente: bi datihi-dat, que é, como já vimos, a essência e, notadamente, a essência de Deus; e, finalmente, subsisto é o árabe qiwan: "manter-se em si" (auf sich selbst stehen), termo fundamental da filosofia de Avicena, que tem sua origem no próprio Alcorão: Deus é fundamento absoluto, letzte Fundierung, diria Husserl.

Quem quer que se ocupe da história da filosofia sabe, ou deveria saber, que os termos filosóficos, desde Aristóteles, dizem-se de diversas maneiras, pollakhos légontai, e que, portanto, o ente (tò ón) se diz, como já vimos, de quatro maneiras: segundo as categorias, como verdadeiro e falso, como potência e ato, e como acidente ou em-si. Ninguém, no entanto, reparou no fato de que este ser, ou antes, este ente assim distribuído por Aristóteles, é totalmente diferente do ser dos três modi essendi de Santo Tomás, do qual tratamos detalhadamente. E, muito menos ainda, observou-se que esta diferença na interpretação do ser, ou do que se entende por "ser", está condicionada na história da filosofia européia por fatos de língua, ou, mais exatamente, pela história das línguas em geral e das línguas indo-européias em particular.

O tipo das línguas indo-européias constituiu-se, quanto à sua estrutura lógica fundamental, pela fusão de dois tipos de frases, que são inteiramente distintos nas línguas semíticas: a frase nominal (como "a Terra é redonda" ou "a Terra é uma esfera"), e a frase verbal (como "a Terra gira em torno do Sol"). Um dos resultados desta fusão é o verbo ser (como o esti em grego etc.), verbo que combina as duas noções - a de "existência" e a de pura "junção no intelecto" (copulatio in intellectu, como dizia o tradutor de Averróes) - e que não existe em nenhum outro tipo de língua. É este verbo especificamente indo-europeu e, de uma certa maneira, restrito ao indo-europeu antigo, que está na base tanto da filosofia grega (que se ocupa principalmente da questão tí estin?; "que quê é isto?"), quanto da forma de pensamento da língua grega como logos, ou seja, caracterizada e condicionada em sua consciência interior por um princípio de isomorfia entre a articulação do discurso e a articulação da coisa.

Deveria, desde então, estar claro para quem quer que não feche os olhos, que os quatro modos do ente de Aristóteles correspondem a esta maneira de articular o mundo, que Santo Tomás designava por "absoluta consideratio", enquanto a concepção dos três modi essendi do próprio Santo Tomás afasta-se deste modo de ver o mundo, ao incluir na própria forma de pensar a transcendência entre o que pensa e o mundo.

Esta "transcendência" estava contida na forma árabe de um pensamento de intencionalidade como princípio operativo, mas na formulação de Santo Tomás e, depois, na forma de pensamento européia em geral, ela tornou-se temática. Podemos, então, dizer que esta forma de pensamento árabe de intencionalidade teve, neste caso, a função de uma "porta" pela qual, ou através da qual, essa concepção do ser totalmente "objetiva", que encontramos nas quatro maneiras de dizer o ente de Aristóteles pôde transformar-se numa concepção de determinação "subjetiva" de uma objetividade dada.

A razão pela qual nós combinamos estas constatações quanto à dependência de Santo Tomás da filosofia árabe com as considerações sobre a interdependência e a interação das grandes civilizações e de suas formas de pensamento em geral é, antes de tudo, o desejo de comunicar uma visão de conjunto deste grande acontecimento que é o surgimento do mundo moderno na Idade Média (acontecimento muito freqüentemente desconsiderado em favor do pretenso Renascimento). Eis aí, como esperamos ter mostrado, um acontecimento para o qual concorreram as mais diversas forças, mas ao centro do qual, olhando mais de perto, encontramos sempre a figura deste homem cujo sétimo centenário da morte celebramos há pouco.

Uma outra conclusão impõe-se, ainda, a partir desta que expusemos, a saber: reconhecer que os grandes homens, quando exprimem idéias que transformam o mundo, não agem por sua própria vontade (por assim dizer, pronunciando aquilo que lhes vem ao espírito, como se tende a imaginar nesta Europa moderna, afetada e infectada pelo espírito do Cogito ergo sum), simplesmente eles proferem verdades para as quais - depois de um longo processo histórico - as constelações dos tempos tinham se tornado já maduras, mesmo quando o comum dos mortais delas não tivesse ainda se apercebido.



* Texto da conferência "Saint Thomas et les Arabes (Structures linguistiques et formes de pensée)", proferida no Instituto Superior de Filosofia de Louvain, em 8 de outubro de 1974. Publ. na Revue Philosophique de Louvain, t. 74, fév. 1976, p. 30-44. Trad. por Ana Lúcia Carvalho Fujikura e Helena Meidani, mestres do Programa de Pós-Graduação em Cultura Árabe - FFLCH-USP. Revisão técnica: L. Jean Lauand.

REFERÊNCIA:
http://www.hottopos.com.br/videtur11/santotom.htm
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PESQUISADO, PELO PROF. FÁBIO MOTTA (ÁRBITRO DE XADREZ).

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